Glauco Arbix – professor titular da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, coordenador do Observatório da Inovação do IEA e integrante da coordenação da Rede de Pesquisa Solidária.
Tudo indica que o século XXI terá de renascer após a pandemia. Apesar dos imensos avanços da ciência e da tecnologia (C&T), a humanidade foi surpreendida por eventos há muito anunciados, mas nunca levados suficientemente a sério por autoridades de países desenvolvidos e emergentes. A atual crise gerada pela covid-19 já deixou em seu rastro pelo menos três grandes marcas: a primeira está cravada no alto custo em vidas e sequelas que feriram populações imensas em um curto espaço de tempo. Somente no Brasil as mortes superaram o patamar dos 70.000 óbitos e continuam crescendo; a segunda responde pela aguda recessão e consequente diminuição do emprego, de salários e de renda, fechamento de empresas e desorganização da economia, com aumento das desigualdades e da pobreza; a terceira está ligada à corrosão institucional e à disseminação do medo e da perplexidade na sociedade.
A enorme onda de insegurança que percorre os países afetará de modo duradouro o modo de se viver e trabalhar, com impactos de longa duração na economia mundial, particularmente danosos aos países em desenvolvimento como o Brasil. As decisões de hoje desenharão os contornos das sociedades para as próximas gerações, que terão de aprender a conviver com a incerteza. Essa nova realidade terá especial significado para a educação, para a produção de ciência e a tecnologia. E exigirá mudanças substantivas de nossas escolas e universidades.
Pelas vias da tragédia, o mundo ficou sabendo que, em abril de 2020, a pandemia tomou conta de mais de 200 países e matou 17 pessoas por minuto. Até junho, a crise havia empurrado para a pobreza extrema cerca de 60 milhões de pessoas. O impacto no emprego é o maior desde a 2ª Guerra Mundial, com perdas de mais de 10% de horas agregadas de trabalho, o equivalente a mais 300 milhões de trabalhadores em jornada integral.
Cálculos da Rede de Pesquisa Solidária para o Brasil deram uma pequena amostra da dimensão do impacto: (i) Um quarto dos trabalhadores brasileiros (23,8 milhões de pessoas) foram identificados como vulneráveis em razão da pandemia. Ou seja, trabalhadores que já perderam a condição anterior de estabilidade de renda; (ii) Mais de 70 milhões de pessoas (cerca de 80% da força de trabalho) experimentam algum tipo de vulnerabilidade em meio à pandemia.
As crises, em geral, revelam o pior e o melhor das sociedades. Nas atividades de Ciência e Tecnologia (C&T) não poderia ser diferente.
Um dos maiores desafios para o Brasil será a superação das disfuncionalidades de um governo que abdicou da tarefa de dirigir o País para o combate à pandemia. A começar pelas atividades erráticas e desequilibradas da presidência da República, pela instabilidade que gerou no Ministério da Saúde e pelo incentivo a uma equipe econômica que ascendeu vilanizando o setor público e se vê obrigada a executar políticas de estado que não estão entre suas competências. A degradação da C&T imposta pelo governo é uma das faces da inadequação política e institucional que corrói o Brasil de hoje, um paradoxo flagrante iluminado pela atividade de milhares de pesquisadores que transformaram as universidades em epicentros da busca acelerada de soluções para a covid-19.
A pesquisa científica brasileira projetou-se como uma das primeiras no mundo a sequenciar o genoma do vírus e a replicá-lo em laboratório, o que permitiu a realização de testes em todo o País. Redes de pesquisadores foram criadas e as universidades, a começar pela USP, se mobilizaram em todos os campos e áreas, nas exatas, biológicas e nas humanidades. Institutos como o Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM), a Fiocruz, o Instituto Butantan, a Faculdade de Medicina da USP, o Instituto de Ciências Biomédicas se concentraram na busca de novos tratamentos e medicamentos. A Rede de Pesquisa Solidária, que reuniu mais de 70 pesquisadores, nasceu do encontro de instituições como a USP, o Cebrap, o Centro de Estudos da Metrópole, o Hospital Albert Einstein e o Incor, e foi apoiada por centros como o Instituto Betty e Jacob Lafer, o Instituto Tide Setubal, o Ethos, o Núcleo Afro, a Fundação Ford, e também por empresas como a InLocco e a Great Place to Work, para citar algumas. Integrou a ampla mobilização nacional que se pautou pela recusa da indiferença e pela defesa da vida.
A velocidade da resposta permitiu entrever o enorme potencial que o Brasil possui para a geração de conhecimento voltado para o desenvolvimento do País. Mas é preciso foco, financiamento estável e definição de prioridades, pois sem o apoio público de longo prazo e educação de qualidade o País colherá apenas soluços científicos e tecnológicos.
Se é certo que, no curto prazo, o combate à pandemia exigiu a utilização de toda a capacidade científica disponível, no mundo e no Brasil, no longo prazo, é imperativo que os esforços alcancem expressão institucional, única forma capaz de garantir longevidade e proteção contra os humores e oscilações da política e da falta de estratégia para C&T.
As crises passam, por mais dolorosas que sejam. Mas as instituições podem permanecer e indicar caminhos sólidos para uma inflexão no metabolismo das universidades e na pesquisa brasileira. Para isso, além do esforço para a elaboração de políticas de longa duração, é fundamental que as universidades se abram para o debate e para a reflexão sobre suas práticas e estruturas, a começar por seu relacionamento com a sociedade e a comunicação entre faculdades, institutos e departamentos. A estanqueização reinante não ajuda a pesquisa atual que é, essencialmente, multidisciplinar e multi-institucional.
A busca dessa interação e o sentido social que permeou a pesquisa em meio à crise deram sentido aos pontos elencados a seguir:
- A cooperação irrompeu com força, em especial pela estatura dos desafios colocados pelo coronavírus, que só podem ser equacionados com a interação e fusão de estratégias diferenciadas.
- A pandemia quebrou algumas práticas não desejadas, mas que sempre estiveram presentes na atividade científica. A transparência e a precisão metodológica diante das pressões da covid-19 tornaram difíceis a preservação de espaços “secretos”, de “laboratório públicos apropriados por grupos de profissionais” e de contenção do fluxo de informações, em geral voltados para inibir potenciais competidores.
- Assim como o vírus, a pesquisa foi levada a superar as fronteiras nacionais, em contraste com o discurso nacionalista rasteiro de vários governos, a começar do brasileiro e com visões provincianas que represam a inteligência na academia.
- A profusão de bancos de artigos veiculados publicamente antes da revisão por pares para publicação em revistas científicas indexadas é a marca desse período. Esses bancos viveram uma explosão de artigos de pesquisadores do mundo todo que escolheram a abertura à crítica de seus trabalhos como forma de acelerar o fluxo de conhecimento.
Ao interagir fortemente com as demandas da população na busca de instrumentos efetivos de combate à pandemia, a comunidade científica deu sinais claros de que é possível abrir um novo capítulo na história da C&T.
Nada será tranquilo, uma vez que o mundo e o Brasil estarão mais pobres, com as finanças exauridas, provavelmente marcados pela inflação, desemprego e com o agravamento das desigualdades sociais, principal obstáculo ao desenvolvimento.
A construção de um novo ambiente para a C&T no Brasil, com financiamento adequado e estabilidade, capaz de formar novas e vibrantes gerações de cientistas, depende da qualidade das respostas que prevalecerão na sociedade.
Trata-se, hoje, de uma disputa em aberto, que exigirá muito desprendimento e competência das universidades, do setor público e privado e das conclusões do debate na sociedade.
Como as universidades, centros de pesquisa e a comunidade científica estarão posicionadas neste novo ambiente? Será que as práticas de cooperação intensa e a internacionalização serão encarnadas em instituições ou se dissolverão com a crise? Até que ponto as universidades se manterão conectadas à sociedade?
Respostas difíceis pedem tempo de maturação, um tempo que o País não tem. Por isso, quanto antes o debate se iniciar, melhor. O que se sabe é que os caminhos tradicionais de saída para a crise estarão vedados ou repletos de obstáculos. Nessas condições, ninguém melhor do que os profissionais da ciência, que têm no conhecimento inovador sua matéria-prima, para desbravar novos territórios, elevar o patamar de impacto social da atividade de pesquisa e consolidar a sintonia com o esforço de milhões de brasileiros que buscam uma vida mais decente. Não à toa, o pós-crise tem encontro marcado com todos aqueles que possuem disposição para repensar a educação, o sistema de saúde, o modo de trabalhar e de se viver em nosso país.
Um novo sistema nacional de C&T deve ser estruturado. A comunidade de pesquisadores de todos os cantos do País precisa se reunir, debater e propor um novo modo de se fazer ciência no País. Um Encontro Nacional de Cientistas, de todas as áreas e regiões, pode dar voz e unificar esse esforço.
O impacto da covid-19 desvelou a extrema vulnerabilidade do planeta, que sofre com as mudanças do clima e com o cortejo de enchentes, secas, migrações, falta de alimentos e de água, que apenas ocasionalmente incomodam a consciência de planejadores e governantes. A pandemia expôs ao mundo e aos brasileiros um país marcado por um nível insustentável de desigualdade econômica e social. Mas mostrou também que há energia e disposição para um encontro com a humanidade.
A ciência que investiga e joga luz no irreconhecível tem condições de ocupar um lugar de destaque no esforço da sociedade, seja por seus méritos, seja pela capacidade de apontar caminhos mais saudáveis e civilizados para todos.
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