NOVO MARCO DE CT&I: AVANÇOS, LACUNAS E DESAFIOS

Por 27 de abril de 2016

Glauco Arbix* e Daniel Babinski – Advogado e Mestre em Direito pela USP**

Criatividade e ousadia sempre ajudam quem quer e precisa inovar. Mas a existência de um ambiente amigável à inovação é chave. Ainda mais para o Brasil, que sofre com a baixa produtividade de sua economia.

A Lei nº 13.243, promulgada em 11 de janeiro de 2016, representa o mais recente esforço de modernização da legislação de ciência, tecnologia e inovação no país. Revisou amplamente com a Lei de Inovação, de 2004, um marco na construção de um sistema regulatório legal avançado, mas alterou também dispositivos em outras oito diferentes leis.

Uma iniciativa positiva, suprapartidária, amadureceu ao longo de quatro anos de debate intenso entre representantes do mundo acadêmico, empresarial e de governo. O resultado é que a nova legislação aprovada permite agilizar, aumentar a transparência e diminuir a burocracia e a insegurança jurídica em vários pontos importantes das atividades de CT&I, em especial das Instituições de Ciência e Tecnologia (ICTs), mas também em pontos importantes que facilitam a Pesquisa e Desenvolvimento (P&D) nas empresas, o calcanhar de Aquiles da economia brasileira.

Dentre os novos itens aprovados, destacamos:

  1. Dispensa de licitação do fornecimento de produtos e serviços encomendados a empresas e/ou ICTs nos termos do art. 20 da Lei de Inovação, com novo procedimento de remuneração para o desenvolvimento de encomendas tecnológicas;
  2. Extensão do Regime Diferenciado de Contratações Públicas para ações de órgãos dedicados à Ciência, Tecnologia e Inovação (CT&I). Ou seja, instituições municipais ou estaduais, além das federais, podem estabelecer regime simplificado, com regras próprias, para aquisições de bens e serviços de CT&I;
  3. Ampliação para até 416 dias do período que os pesquisadores em regime de dedicação exclusiva (nas universidades e também em institutos e centros de pesquisa) possam exercer atividades remuneradas de P&D em empresas ou em conjunto com empresas, desde que observada a conveniência do órgão de origem e assegurada a continuidade de suas atividades de ensino ou pesquisa;
  4. Contratação mais fácil de pesquisadores estrangeiros para ICTs e empresas;
  5. Redução das dificuldades de acesso a insumos para pesquisa e equipamentos comprados no exterior, com tratamento aduaneiro prioritário e simplificado;
  6. Permissão para a utilização de laboratórios e equipamentos públicos para atividades compartilhadas com empresas, mediante contrapartida financeira ou não financeira;
  7. Maior liberdade para ICTs e parceiros pactuarem acerca da propriedade intelectual e participação nos resultados obtidos no âmbito dos acordos de parceria, podendo a ICT ceder ao parceiro privado a totalidade destes direitos mediante compensação financeira ou não financeira, sem necessidade de chamada pública.

Dentre as citadas acima, do ponto de vista do desenvolvimento do país, a mais importante e salutar refere-se à consolidação das encomendas tecnológicas como instrumento chave para a inovação. Na verdade, esse dispositivo já integrava a Lei de inovação (em seu artigo 20). Sua formulação, porém, abria-se para interpretações diversas, que levaram ao predomínio de visões rígidas nos órgãos de controle, nas procuradorias, no judiciário, em círculos políticos e do próprio governo, que chegaram até mesmo a questionar sua legitimidade constitucional.

Em nome da livre competição, as encomendas tecnológicas foram praticamente banidas do rol de ferramentas voltadas para impulsionar o desenvolvimento científico e tecnológico. O resultado concreto que o Brasil colheu, apesar dos avanços da lei em 2004, foi que a economia brasileira, as empresas e as universidades e centros de pesquisa ficaram em desvantagem em relação aos países produtores de tecnologia, que utilizam fartamente as encomendas tecnológicas como recurso decisivo para se alcançar o desenvolvimento tecnológico. Nesse sentido, o Brasil, com o novo marco de C&T, dá um passo à frente e recompõe, pelo menos legalmente, as condições de uso de instrumentos dinâmicos, como as encomendas e o poder de compra do Estado, para impulsionar a inovação.

Problemas

Em que pesem os avanços, há pontos de tensão importantes que exigem atenção e cuidados redobrados.

Em primeiro lugar, é importante registrar que a Presidente da República sancionou a Lei com oito inesperados vetos. Um dos vetos estabeleceu uma diferenciação entre bolsas de estudo por ICTs privadas e as bolsas oferecidas pelo Governo para o desenvolvimento de inovações. As bolsas públicas passaram a contar com isenção previdenciária, procedimento vedado ao setor privado.

Outro veto, ainda mais relevante, teve por objeto a previsão da contratação, por dispensa de licitação, de empresas de micro, pequeno e médio portes, para a prestação de serviços ou fornecimento de bens elaborados com a aplicação sistemática de conhecimentos científicos e tecnológicos, que cumprissem os requisitos formais previstos no art. 20-A.O objetivo deste artigo era favorecer e promover a formação de cadeias produtivas de maior densidade de conhecimento e fortalecer a indústria nacional de base tecnológica.

Como o impacto econômico das propostas é pequeno, é provável que a variável explicativa encontre respaldo em uma falta de visão sobre a urgência de se apoiar as pequenas empresas, tão vulneráveis quanto necessárias para o Brasil caminhar em direção a uma economia puxada pela inovação.

Em debate recente na USP, o deputado Sibá Machado, um dos principais patrocinadores do projeto de lei, anunciou que a Presidente prometeu reintroduzir o conteúdo dos oito vetos via Medida Provisória. Esperamos que esse anúncio seja confirmado pelos fatos rapidamente e que os vetos tenham ocorrido apenas como expressão de um descuido ou desarticulação infeliz.   

Segundo, sabemos que muitos itens da nova lei dependem ainda de legislação regulamentadora complementar. Esse ponto está longe de ser trivial, uma vez que, todos sabem, o diabo mora nos detalhes, e o Brasil é pródigo em aprovar boas leis que são desfiguradas por regulamentação posterior, como foi o caso recente da Lei de Biodiversidade.

Em terceiro, vários pontos do novo marco servem de guia para as instâncias estaduais, que não são obrigadas a seguir, automaticamente, definições que têm validade apenas no âmbito Federal, como é o caso das universidades e centros de pesquisa do estado de São Paulo. Ou seja, os Estados, o Distrito Federal e os municípios deverão legislar sobre suas particularidades.          

Por onde avançar?

As lacunas da nova Lei precisam ser trabalhadas desde já, pois o país tem pressa, e a economia navega nas águas turbulentas da crise e pode encontrar ânimo e alivio na inovação para reencontrar-se com o crescimento.

As cinco sugestões a seguir apenas indicam lacunas que o novo marco poderia ter tratado e que, infelizmente, permanecem à espera de tratamento de urgência.

  1. É vital para o país favorecer os fluxos de conhecimento entre as ICTs, empresas nacionais e os centros internacionais líderes em pesquisa e desenvolvimento, seja para favorecer a absorção, seja para estimular a geração de tecnologia. O Brasil precisa obstinadamente buscar a diminuição da distância tecnológica que separa sua economia, a começar da indústria, dos centros mais avançados. Para isso, é fundamental permitir o livre acesso de cientistas e pesquisadores estrangeiros dispostos a contribuir com o avanço do país. Desse ponto de vista, o novo marco legal promoveu alterações apenas tímidas no sentido de priorizar ou diminuir a burocracia consular e os trâmites legais previstos pelo Ministério do Trabalho e Emprego. Assim, permanece extremamente penosa a tarefa de absorver e interagir, aqui no Brasil, com o conhecimento internacional de ponta.
  2. A nova lei perdeu também a oportunidade de criar e regulamentar o Sistema Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação, previsto no artigo 219-B da Constituição Federal. Criado pela Emenda Constitucional nº 85, de 2015, a proposta do Sistema Nacional envolve a organização de entes públicos e privados, em regime de colaboração, por meio de normas gerais definidas por lei Federal. Sua efetiva criação, portanto, daria ao novo marco legal de CT&I contornos mais inovadores ao identificar não apenas responsabilidades e competências, mas também o financiamento correspondente às ações, instrumentos e programas relacionados.
  3. Na mesma direção, as mudanças não tocaram no sistema de propriedade intelectual, deixando de abordar um dos componentes essenciais dos mecanismos avançados de inovação que é o sistema patentário. O Brasil continua prisioneiro de um INPI de baixo desempenho, constrangido por normas que inibem sua agilização.
  4. O novo marco também não se debruçou sobre o mercado de Venture Capital, em suas distintas versões e modalidades. O apoio necessário às startups e pequenas empresas tecnológicas ficou à margem. E, sabemos, não haverá avanço sério no âmbito da tecnologia sem dinamização do mercado de investimento, com modernização de sua legislação e efetiva liberação do potencial dinamizador das empresas nascentes.
  5. Destaca-se, por fim, como a principal lacuna da nova Lei o tratamento e a ausência de mecanismos de financiamento do sistema nacional de inovação, que se mostram insuficientes e obsoletos, seja no volume de recursos disponíveis, na baixa qualidade do investimento e no frágil desempenho de sua governança. Embora a legislação preveja os diversos instrumentos de apoio e financiamento às ICTs e empresas, não há previsão quanto à origem e sustentabilidade dos recursos públicos a serem empregados, o que fragiliza o planejamento e gestão das políticas públicas voltadas à C,T&I.

A instabilidade e descontinuidade dos recursos é prática a ser abolida definitivamente do ambiente de inovação no Brasil. É premente a diversificação do sistema de inovação, com a entrada de novos personagens, de porte, capazes de fazer a diferença. O sistema bancário, a começar do Banco do Brasil e da Caixa, deveriam ser orientados por essa necessidade. Isso aliviaria as agências especializadas, para que pudessem se dedicar a projetos de longo prazo, estruturantes, ao mesmo tempo em que a inovação teria condições de se massificar.

Esse é o ponto chave de toda discussão sobre CT&I. Iniciativa privada e governo, universidades e empresas precisam ter clareza de que isoladamente não teremos êxito em nos aproximar das melhores práticas e da geração de conhecimento mais avançado. Nesse sentido, interação, sinergia e cooperação são as palavras fundamentais que deveriam nortear toda e qualquer mudança no marco legal-regulatório.

Esperamos que nas mudanças futuras façam prevalecer seu peso e significado. Para o bem da CT&I e do país.     

* Glauco Arbix, Professor de sociologia da USP, pesquisador do Observatório da Inovação do instituto de Estudos Avançados. Ex-presidente da Finep e do Ipea.
** Daniel Babinski, mestre em Direito do Estado pela USP e sócio do Gomes & Navarro Advogados Associados.

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