O SONHO CHINÊS E O PESADELO ALEMÃO

Por 4 de julho de 2016

Glauco Arbix*
Valor, 04/07/2016

O sono de governantes em Berlim e em toda a Europa não tem sido muito tranquilo desde que a chinesa Midea ofereceu € 4,5 bilhões para controlar a Kuka, uma das mais avançadas empresas de robótica da Alemanha.

A possibilidade de aquisição da empresa alemã que produz robôs de última geração, utilizados pela BMW e Audi, assim como pela americana Boeing, amedronta europeus, americanos e japoneses. O temor é mais do que compreensível, pois se o negócio se concretiza, a quarta revolução industrial, chave para os países avançados, pode prosperar rapidamente na China.

Se realizada, a compra representará o controle da China de tecnologias críticas que estão na base das estratégias alemãs de manter sua liderança mundial em manufatura, com a plataforma chamada Indústria 4.0.

A Kuka lidera segmentos que caminham aceleradamente para a digitalização dos processos industriais, que têm no horizonte a automação completa das fábricas. O incômodo no governo de Angela Merkel é profundo e repercute inclusive no Parlamento Europeu, com a disseminação de fortes dúvidas sobre a oportunidade – ou não – de se permitir a passagem de uma empresa chave para mãos chinesas.

O espectro de que carros, máquinas e aviões do futuro deixariam de ser símbolos de Stuttgart ou Wolfsburg, e passariam a se apresentar com sotaque mandarim é fonte de fortes debates entre autoridades e empresários. Empresas alemãs como a Siemens, ou a suíça ABB e a multifacetada Airbus são insistentemente sondadas para a formação de um consórcio pan-europeu voltado para a manutenção do controle da Kuka, em uma clara tentativa de desconstrução das ambições da Midea.

A convicção de que Beijing jamais permitiria uma aquisição de tecnologia chinesa dessa qualidade, alimenta ainda mais as resistências.
Diante do nervosismo das autoridades, executivos da Midea afirmam que a aquisição seria altamente benéfica para a Kuka, que teria acesso irrestrito ao mercado chinês, que hoje conta com o maior número de robôs instalados na indústria, e se encontra em franca expansão.

A questão de fundo é que a China, mais do que a busca de robôs para a indústria, busca um passaporte para o futuro, cuja base é a integração entre manufatura, serviços e comércio. Mais do que uma fábrica de robôs, a Kuka traz a possibilidade de incorporação aos ativos chineses de toda uma plataforma tecnológica, baseada em conhecimento e processos de alto desempenho.

Pela sua condição de liderança na indústria inteligente, a Alemanha se converteu no prato preferido para saciar o apetite do Reino do Meio: em 2015, 36 empresas alemãs de tecnologia foram adquiridas por grupos chineses, sendo que neste meio ano, outras 25 estão em negociação.

Com o aquecimento da demanda, o ticket médio de aquisições na Alemanha também subiu. Apenas neste ano, a ChemChina comprou a KraussMaffei Group, empresa de máquinas, por €1 bilhão e a Beijing Enterprise Holdings arrematou a EEW Energy from Waste, empresa de processamento de resíduos e de energia, por €1.44 bilhões. O atual lance da Midea representa uma nova escala nas aquisições, expressão maior da determinação chinesa.

A China busca robotizar aceleradamente seu parque produtivo, mas quer também se capacitar para a fabricação de produtos high tech, em que a precisão e a qualidade são essenciais. O trânsito para uma nova indústria, mais digitalizada e baseada em circuitos integrados, sensores, softwares e inteligência artificial é chave para elevar seu padrão produtivo, ainda muito intensivo em trabalho humano.

A travessia para a produção de bens mais sofisticados é o caminho visualizado pelas autoridades chinesas para entrar no seleto grupo dos países que desenvolvem carros autônomos, programas espaciais avançados, drones, medicamentos e equipamentos de saúde de última geração. A China tenta comprar seu ingresso no grupo de elite dos países que alimentam a construção de um novo paradigma industrial, com consequências para todo o planeta. A competição é aguda, pois também a Coreia, a Índia e outros emergentes procuram não ficar para trás, arriscando se perder nas franjas do mundo avançado, enredados no universo das commodities.

Os países atentos a esse movimento usam e abusam de todas as armas, desde a adoção de zonas especiais para o desenvolvimento de robôs e automação, passando pelos estímulos à formação de joint ventures com empresas estrangeiras e atração do investimento externo, até a construção de plataformas exploratórias de novas tecnologias, com mudanças no modo de ensinar engenharia e na qualificação das pessoas.

O Brasil, por meio de seus ministérios e órgãos como o BNDES, a Finep, ABDI, CNPq, INPI e InMetro, deveria estar totalmente voltado para esses desdobramentos, seja pelas dificuldades da economia, seja pela profunda crise que devora nossa indústria.

No entanto, num ambiente que exala negatividade, o risco no Brasil é que a preocupação dos governantes europeus diante das pretensões chinesas seja interpretado como mais uma permissividade e interferência indevida do Estado no livre jogo do mercado. Enquanto nosso país decide o que o Estado pode ou não fazer, alemães, europeus e chineses, cada um a sua maneira, utilizam todo o arsenal disponível para blindar ou ampliar seus ativos tecnológicos. Dada a crise econômica e ausência de prioridades para a alocação dos escassos recursos, nosso país tende, mais uma vez, a ser engolido pelo curto prazo e a empurrar para o gueto nossa Ciência, Tecnologia e Inovação.

Bem que o governo e empresários brasileiros poderiam assumir comportamento mais básico e correr atrás de algum negócio parecido, ainda que levemente, com o da China.

A internacionalização de nossas empresas e universidades assim como a reformulação de nossa indústria a partir da busca obstinada de conhecimento e tecnologia, dentro e fora do país, são atividades que expressam inteligência e ajudam a elevar a baixa produtividade. E ainda por cima não custam caro, principalmente se comparadas ao preço que nossa economia vai pagar pelo atraso da nossa indústria que não para de se aprofundar.

*Professor Titular da USP, pesquisador do Observatório da Inovação e ex-presidente da Finep

Artigo publicado no jornal Valor Econômico, na seção opinião, página A-11, em 04/07/2016.

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1 comentário

  • […] A Kuka é uma das quatro grandes que lideram a robótica mundial. Exatamente por isso, desde o início, o anúncio dos planos da Midea foi motivo de forte apreensão não só de alemães, mas também dos demais europeus, americanos, japoneses e coreanos e todos os que utilizam intensamente a engenharia de automação (ver O Sonho Chinês e o Pesadelo Alemão). […]