Torba Azenha
A Revista do Tecnólogo conversou com Glauco Arbix, professor Livre-Docente do Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo (USP), que integrou o Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia, foi coordenador geral do Observatório de Inovação e Competitividade do Instituto de Estudos Avançados da USP e presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA).
por Ana Paula Rogers
Revista do Tecnólogo – Em que patamar o Brasil se encontra em relação à tecnologia, especialmente neste momento, que enfrentamos cortes nos investimentos?
Glauco Arbix – O Brasil sempre esteve, em geral, distante da fronteira da produção do conhecimento novo, seja em termos das nossas ciências, seja em termos de tecnologia e inovação. Você tem gradações entre cada uma dessas áreas, há a inserção muito interessante de cientistas nossos em programas de relevância, de peso, que tenham expandido os limites do conhecimento na área científica; você tem, ocasionalmente, avanços tecnológicos, em especial na área de petróleo e gás, na área espacial, de construção de aeronaves e mesmo em termos de inovação o Brasil conseguiu construir um agrupamento dinâmico de empresas, ainda que seja muito pequeno. Empresas que acabam investindo em pesquisa e desenvolvimento mais do que a média dos países da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico), por exemplo, que é o clube dos países mais avançados. Mas em cada uma dessas áreas – com diferenças – o Brasil tem atrasos. Há áreas, alguns segmentos, em que o Brasil está na fronteira – como a exploração em águas profundas. Com todos os problemas que a Petrobras viveu e vive ainda, o Brasil tem uma engenharia capaz. Hoje a maior parte do petróleo produzido pela Petrobras vem de águas profundas, que muitas vezes é confundido com petróleo. Petróleo é uma commodity. Mas a exploração do petróleo em águas profundas não tem nada a ver com commodity, ela está na fronteira da engenharia, precisa de softwares de, sensoriamento remoto extenso, de materiais ultra resistentes a pressão e temperatura, sondas especiais, robôs, e q u i p a m e n t o de todo tipo, é uma engenharia extremamente difícil e a Petrobrás conseguiu avançar mais rapidamente do que o esperado nessas áreas. Na área de projetos de avião, não tanto na parte de turbinas ou de aviônica, de radares, mas em termos de projetos, da concepção, da articulação de fornecedores, a Embraer é um exemplo, a maneira como trabalhou com o conhecimento dos outros e com isso potencializou suas ideias, seus projetos para seus aviões, na verdade transformou a Embraer na terceira grande produtora de jatos do mundo. Está agora entrando muito forte na área de defesa, com o KC 390, que é um avião bastante sofisticado. As entregas ainda não começaram, mas as vendas já, com expectativa de sucesso.
E encontramos exemplos localizados em várias áreas em que o Brasil excede: uma base de tecnologia e ciências. O Brasil criou uma elite científica forte, tem uma engenharia respeitada e um grupo de empresas. Agora, se você me pergunta se isso é suficiente, é capaz de lançar o Brasil pra se equiparar, concorrer com outras economias – sejam avançadas ou emergentes que crescem rapidamente, como China, Coreia do Sul ou mesmo a Índia – eu diria que não. O Brasil tem deficiências muito grandes em termos de volume daquilo que produz, em termos da qualidade do que produz, dos produtos, o que faz com que a gente tenha tido uma inserção quase que marginal nas grandes reviravoltas dos últimos 40 anos. Na microeletrônica no final dos anos 70 e 80 o Brasil passou à margem, na revolução da informática o Brasil teve muita dificuldade. E também nesse momento, com o avanço muito grande de tecnologias emergentes. O que se desenha pela frente vai certamente colocar em questão a maneira como se produz, a maneira como os serviços são feitos, apontando para uma mescla entre serviços e indústria, com tecnologias vinculadas à inteligência artificial, analíticas, revolução 3D, robótica. Nessas áreas de ponta, o Brasil tem ainda uma inserção muito pequena. É um certo contraste com o que está sendo feito, em relação aos cortes orçamentários, aos cortes de investimentos públicos, quando eles se combinam com a área da economia, isso dá uma fotografia nossa de futuro que sai muito ofuscada.
Revista do Tecnólogo – Apesar de termos uma engenharia forte, temos, por exemplo, no saneamento, índices precários. Seria mais uma questão de gestão?
Glauco Arbix – Não diria que é só gestão, a questão chave é de estabilidade do investimento, que tem que ser crescente nesta área, que é uma área crítica, que toca diretamente na saúde da população, na maneira como as cidades se organizam – para o bem e para o mal. Nós temos dificuldade de manter os investimentos. As oscilações da nossa economia produzem essa alternância. A gente tem um problema com essas elites políticas que governam o país, que cada vez que assumem sempre acham que estão descobrindo a pólvora, então há descontinuidade de programas – alguns merecem, outros não. Por fim temos esta crise em que estamos atolados, que é uma crise que combina dificuldades econômicas, mas que fundamentalmente é uma crise política, que corta da gente perspectivas de futuro. Temos que sair desta situação de qualquer jeito porque o país não aguentará sobreviver, começará a se esfacelar.
Revista do Tecnólogo – Temos atualmente um alto índice de desemprego. Ao mesmo tempo temos uma grande parcela da população sem qualificação. Como as tecnologias estão impactando na questão do emprego?
Glauco Arbix – Dificilmente podemos encontrar no Brasil uma avaliação que caracterize que a tecnologia é a vilã do desemprego porque nossa economia está muito defasada. Ela não é tão embebida de tecnologia ao ponto da gente dizer que é a tecnologia que está desempregando. Pode haver num determinado ramo industrial, mas está longe de afetar o conjunto da economia. Como um setor inteiro, você vê isso fortemente no agronegócio. O Brasil é o segundo produtor mundial de alimentos, uma potência, tem competitividade nessa área, muita tecnologia e que emprega muito pouca gente. É difícil falar que o desemprego acontece em função da tecnologia do agronegócio, porque este já nasceu como sendo extremamente poupador de empregos. Sem dúvida que é uma vasta área da economia, ainda que tenha uma participação não tão grande assim na formação do PIB brasileiro – mas é um setor que não emprega de forma correspondente àquilo que produz. Se pensarmos no que está surgindo na área industrial e de serviços, vemos que o Brasil está muito defasado em relação a outros países. As coisas não aconteceram ainda. Quando começarem a ocorrer, o impacto do subemprego será forte não só aqui, mas também nas economias desenvolvidas. Nos Estados Unidos, o presidente Donald Trump está fazendo uma política muito agressiva, pressionando as empresas americanas para que tragam suas subsidiárias de volta e num certo sentido faz críticas por estas estarem investindo fora do país e não lá. Muitas empresas estão respondendo a essas pressões e planejamento levar de volta para os Estados Unidos suas unidades de produção. Mas elas não fazem isso apenas para atender às pressões do governo. É porque há vantagens fortes. As políticas que estão surgindo diminuem custos de logísticas e vários outros custos, em especial, da mão-de -obra, que era um dos grandes atrativos para a migração das empresas para países como China, Índia, Brasil, países da América Central e Bangladesh, entre outros, que conseguiam atrair empresas de porte em função de seus custos menores. E isto também envolve imposto menor, preço da terra menor. Tudo bem, podemos dizer que a empresa, ao retornar, irá gerar emprego, mas uma fábrica que emprega 60 mil pessoas na China vai empregar 5, 10 mil ao voltar para os EUA. Porque essa mudança só tem sentido se compensar do ponto de vista de escala e conteúdo tecnológico, quando ela se reinstalar nos EUA. No Brasil, não temos multinacionais saindo daqui e voltando porque encontraram custos mais baixos. Mas há algumas áreas que estão afetadas, uma parte da engenharia brasileira que atua fora do Brasil porque é mais barato, uma parte da pesquisa, na área metalmecânica, automobilística, indústria de aviões – essas empresas estão construindo centros de pesquisa fora do Brasil, em países como EUA e mesmo na Alemanha, que tem um custo mais alto, porque acaba sendo mais barato uma vez que o Brasil se tornou um país caro por milhões de motivos. É um dilema sério pra gente. Nosso padrão de vida já é baixo, nossa renda per capta já é baixa, se a gente começar a sofrer uma pressão desmedida sobre salários, a gente sabe o que nos espera: o que tivemos em grande parte de nossa história moderna, uma política de compressão salarial muito forte, com impacto evidente na qualificação das pessoas, na renda e na qualidade de vida, que já não é nenhuma excelência.
Revista do Tecnólogo – O que é essencial para tentarmos reverter esse cenário ou melhorá-lo?
Glaco Arbix – Temos particularidades, mas o que acontece no Brasil não tem nada de peculiar. Estamos reproduzindo uma parte da história de outros países e uma parte grande da nossa própria história – toda vez que se reproduz a própria história se reproduz com uma pitada a mais de tragédia. Quando se fala sobre educação, por exemplo, o problema vem da formação da nossa escola, da maneira como o estado interveio pra estabelecer as universidades, o ensino médio, o fundamental. A qualidade nunca foi o ponto forte daquilo que nós fizemos. Temos evasão e ao mesmo tempo dificuldade de acesso. Estamos demorando 50 anos para universalizar o ensino fundamental e no ensino médio estamos com defasagens gigantescas. Mesmo os avanços conseguidos num período mais recente em relação ao ensino superior tendem a se desfazer porque, com a queda da atividade econômica, a queda da renda, a universidade vira um luxo para uma parcela da população, que tende a retomar velhos hábitos, que não funcionam, mas que elas são forçadas a isso, não é porque querem. Em vez de estudar, terão que trabalhar, ajudar a renda da família. Uma reprodução de ciclos de perversidade, que atingem de maneira muito forte quem trabalha, quem depende do seu trabalho para sobreviver. Além de uma questão chave: poderíamos fazer um apelo aos governantes, à direita e à esquerda, que têm que amadurecer, têm que acordar para que este país não continue se rastejando do jeito que está, que é uma situação absolutamente deprimente. Temos que ter muito foco em educação, em ciência e tecnologia, que formam um conglomerado compacto – não há país desenvolvido sem ciência e tecnologia. Temos que fazer um esforço grande de inovação, estimular as empresas para que elas desenvolvam tecnologia, para que elas lancem produtos e processos novos de qualidade, que elas respeitem a lei de meio ambiente, que isto seja incorporado em suas estratégias, que elas desenvolvam processos mais sustentáveis. Há tecnologias que estão ao nosso alcance, não haverá emissão zero de poluentes, mas podemos diminuir drasticamente o que fazemos. Isto tem muito a ver também com os sindicatos de trabalhadores. Seria bom que eles passassem a interferir na produção e na formação das tecnologias porque nesse momento em que elas estão emergindo é que a questão regulatória pode coibir excessos. Senão nós vamos ficar condenando robô, que é como qualquer outra máquina, veio, em princípio, para nos ajudar. Se utilizarmos de uma maneira torta, ele vai demitir em massa. Se utilizarmos de maneira combinada com a atuação humana – é possível fazer isso, há vários testes que mostram isso – ele pode nos ajudar a ter mais precisão, mais rapidez, uma qualidade sistemática e permanente. Mas não é bem o que a gente vê nas camadas dirigentes políticas do país e também vê muito pouco nas camadas que dirigem os sindicatos de trabalhadores, que no fundo são ou deveriam ser os grandes interessados, porque essas mudanças todas desabam nas cabeças deles.
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